quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O SR. GORFPOH

Paulo Mota

Eu sou o Sr. Gorfpoh, assistente da diretoria da empresa. Estou saindo do prédio , acompanhado de minha namorada, secretária da presidência, , e não pretendemos mais voltar. Isso é bom porque não seremos mais humilhados pelo sr. diretor-presidente. Afinal, são 20 anos de serviço, sem nenhuma consideração. O que sempre fui? O faz tudo no gabinete da diretoria. O que ela sempre foi? A faz tudo na secretaria. Promoções? Não. Aumento de salário? Não. Mais trabalho? Sim. E humilhações.
"Sr. Gorfproh, o sr. parece ter talento para organizar eventos", disse-me ele um dia, inspirado,quem sabe, por algum desafeto meu . E- como se já não tivesse tanto para fazer- passei a ser responsável também por festinhas . Confesso que me dediquei àquilo. Talvez por crer que teria , enfim, algum reconhecimento. Na festa maior, a de fim de ano, quando da distribuição de dividendos dos acionistas, tornei-me insuperável. Não falo só da qualidade das decorações, iguarias, música Falo das surpresas. Em um ano, os cheques dos acionistas foram entregues por um Papai Noel que entrou pela janela do salão. Em outro, por dançarinas, em sumários biquinis. Houve uma vez em que levei uma atriz de TV, então atuando em novela de grande audiência ( consegui sua colaboração, de graça, por ser cunhada de um primo meu). Em todas as vezes, as festas foram sucessos, mas ele lembrou somente dos defeitos. Cerveja fria, uma ocasião; atraso no início, noutra; ar condicionado fraco, na mais recente. E as reprimendas sempre em público,na frente dos demais funcionários, diretores, contínuos.Anos e anos assim. Dia destes, porém, extrapolou. Humilhou minha namorada,após ela ter entornado, sem querer, uma xicara ,ao servir café durante reunião da diretoria. Estendeu-lhe o próprio lenço e ordenou-lhe que limpasse as gotas que cairam no chão . Não atendeu-a quando pediu para ir à copa buscar um pano apropriado. E ela fez o serviço agachada,diante de todos. Não tem a personalidade tão flexível quanto a minha e, por semanas, a vi ser consumida pelo sentimento de humilhação. No último domingo, não chegasse a tempo, e a encontraria morta em casa por excesso de tranquilizantes. Seu sistema nervoso reagia pessimamente ao dia-a-dia do serviço. Tornara-se-lhe insuportável conviver com os demais colegas. Não. Não podíamos continuar mais ali.Decidimos ir embora. Mas não deixaria de honrar o último compromisso, a festa dos dividendos . E nem furtei-me de preparar a aguardada surpresa anual . Sim. O diretor presidente foi avisado de que ela será inigualável. Está ansioso para vê-la.Como das vezes anteriores, não quis que eu adiantasse nenhuma informação. Prefere ser sempre surpreendido junto com os demais.Este ano, entretanto, ele tem uma função.: dar o sinal para que a surpresa se concretize.Para isso, basta apenas pegar a garrafa de champagne da cabeceira da mesa e abri-la. O espoucar da rolha será o aviso para que comece o espetáculo. Tudo muito simples.Então, em cinco minutos o diretor-presidente estourará o champagne... Eu e minha namorada não estaremos por perto quando ele puxar a garrafa e , colada a ela, o pino da granada que deixei presa no fundo do balde de gelo .

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O OUTRO CORVO


Paulo Mota


Não era um prédio londrino, cinza e antigo,
Cercado de névoas frias e invernais,
Tampouco mansão sombria, não parecia
Nada do que vemos em contos góticos e iguais
Era um prédio paulistano, como tantos outros iguais
Era isso e nada mais.

Não era um estudante imerso em leitura triste
De vagos e curiosos tomos de ciências ancestrais
Nem o amante que sofria o que seria
A maior das dores a afligir a nós mortais
Ou seja: sabermos que hoje são restos mortais
Aquela que amamos, demais

Era , já disse, um prédio paulistano, em ano
Quente, verão terrível, de calores abissais
E no oitavo andar o poeta viciado jazia
Morto por uma dessas doses de drogas tão letais
Que parecia o corpo, retorcido pelas convulsões letais,
Não ser um corpo, jamais.

Não era um cenário de Edgar Allan Poe;
Não era um poema dos que não se fazem mais,
Nem mesmo cena literária parecia
E o corvo sobre a mesa, entre envelopes e postais
Era morto, empalhado, peso de prender postais:
Não falaria nunca mais.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

O BARRIL DE GASOLINA

Paulo Mota


Ele seduziu minha noiva, com seu jeito de sabidão, homem de letras. Não precisou fazer muito esforço pois, desde que ela entrara na faculdade de jornalismo, achava-se mais inteligente de que todo mundo. Eu, dono de uma pequena oficina mecânica, já não lhe servia mais.Trocou-me pelo homem dos livros.
Natural que tivesse raiva dele. Mágoa que até poderia ter passado, com o tempo, mas ele não deixava. Não dizia claramente, mas parecia sempre fazer questão de me lembrar quem ele era. Só consertava o carro dele na minha oficina. Às vezes aparecia apenas para puxar conversa. Chegou a me pagar cervejas na lanchonete da esquina.
Eu não conseguia evitar essa convivência. Não queria passar por um ressentido. Mas aquilo não me agradava; considerava humilhante.
Naquela noite garoenta, às 10 horas, estava no centro da cidade, quando o vi saindo de um bar. Cambaleava . Viu-me e a voz pastosa com que me chamou, deu-me a certeza de que tinha exagerado na cerveja. “ Preciso de um favor seu. Estou quase sem combustível no carro. Não vai dar para chegar no posto da estrada. Você não tem jeito de me arranjar pelo menos uns dois litros por aí?”
Respondi que na oficina tinha um barril de gasolina, onde a gente deixava, de molho, algumas peças. Podiamos ir até lá. Concordou imediatamente e, em poucos minutos, estávamos a caminho. Percurso relativamente pequeno. Bastava pegar a estrada do costão e descer até o bairro de baixo, onde ficava a oficina. Três quilômetros, se tanto.
Percorrido o primeiro quilometro, ele parou, bruscamente.” Barril de gasolina? Barril de gasolina? Você pensa que eu sou bobo? Pensa que não sei de sua raiva de mim? Também li Edgar Allan Poe. Barril de amontilado. Pode descer do carro!”
Repetia as frases em tom acelerado e apontava-me a porta. Saí. Percebi, então, que, apesar de termos parado no acostamento à beira do trecho mais alto do costão ( a escuridão da noite não permitia ver nada, mas era possível ouvir as ondas batendo nas rochas, 30 metros abaixo), ele não puxara o freio de mão. Contornei o carro, pela frente. Aproximei-me de sua janela, bati no vidro, fazendo gestos de que queria dizer-lhe algo. Ele abriu. Rápido, com o braço direito, alcancei o volante, girando-o todo para a direita. Ao mesmo tempo, com o ombro apoiado na coluna da porta,empurrei o carro, como se faz na oficina, quando a gente quer movimentar um veículo sem entrar nele. O carro deslizou facilmente pelo declive, adernou e, logo , estrondava de encontro às rochas no fundo do despenhadeiro, antes de afundar nas furiosas águas do costão. .
Minutos depois, de volta para casa, andando pela estrada,, o corpo molhado pela chuva e a alma lavada pela vingança, eu refletia sobre as coisas que a gente faz. Acreditem-me:nunca me passou pela cabeça matar o sujeito. A idéia só surgiu quando percebi o local em que ele havia parado o carro naquela noite.
A propósito: quem é Edgar Allan Poe?