Denise Ravizzoni
Eles estão lá enfileirados. Todos corretos, um ao lado do outro. Aquela brancura calcária chega a causar incômodo. Não que provoquem náusea ou coisa parecida. Bem pelo contrário. São de uma alvura tão alva que me fazem perguntar por que caralho, afinal de contas, não são todos assim.
E eu, olhando a brancura brilhando no sol da tarde, esqueço que tudo tem uma moldura. Em volta daqueles dentes há toda uma pessoa, uma boca que beija e fala comigo, uma cabeça que pensa, cabelos, mãos e todos os acessórios que costumam vir no pacote dos seres humanos completos.
Vira uma espécie de obsessão instantânea. Não quero aquela pessoa. Não quero aquele sorriso. Não quero a língua em mim, nem a boca que a contém. Quero só a imagem dos dentes, um frame perfeito congelado no tempo. Alguma coisa que eu possa guardar para sempre. Nunca vi nada tão lindo!
E não falo dessa beleza de revista, de expor as carnes como num açougue para ver qual peça de picanha ou filé nos aguça o paladar. Falo daquela beleza subjetiva, de uma espécie de revelação que acontece, mas que a gente não consegue explicar, dimensionar, sei lá.
Fico imaginando um jeito de capturar esses dentes. Arrancar um a um como fez o louco do conto de Poe com a pobre Berenice? Nem pensar! Trágico demais. Pedir para tirar um molde e confeccionar um modelo em gesso, um souvenir? Frio demais. Não me deixaria feliz.
Então, para ter os dentes, só há uma maneira viável. É preciso que todo o resto acompanhe o conjunto de pedaços brancos que me fascinam. Isso implica ter a boca, os olhos, os cabelos, o pau, os pés, e eu não quero. Só quero os dentes, os dentes, os dentes.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
ACASOS FELINOS
Paulo Mota
Foram coincidências. E as tragédias que se sucederam, consequências de minhas excitações alcóolicas.O primeiro gato, Pluto, enforquei,após furar-lhe um olho. Horas depois, minha casa pegou fogo. Coincidência, é claro, como também o fato da única parte que sobrou intacta do prédio apresentar um desenho, feito de marcas de fuligem, semelhante ao de um gato pendurado por uma corda.
O segundo, que encontrei vagando pela rua e que acolhi , como expiação pela morte de Pluto, parecia muito com ele: era preto e também não tinha um olho. Diferenciava-os somente uma mancha branca no pescoço parecendo marca de corda. Reencarnação? Não, acaso. Tenho certeza.
Como era fácil prever, meus excessos alcóolicos levaram-me à maior das tragédias. Em acesso de fúria, matei minha esposa, emparedei o cadáver no porão da casa e, sem me dar conta disso, o gato, vivo . O animal tinha paixão pela dona, passava os dias rondando-a e deve ter entrado no vão da parede, antes que eu o fechasse por completo. Quando a policia vistoriou o porão, à procura de pistas que explicassem o desaparecimento da mulher, bati com a bengala na parede- para gabar-lhe a solidez- e o gato miou no túmulo, revelando o crime.Vingança de reencarnado? Não. Imprudência minha, causada pelo maior dos males, a bebida.
Agora , vejo o gato rondando minha cela há três dias. . Ora aparece em um canto da porta gradeada, ora surge na janelinha alta que dá para o pátio interno da cadeia. Parece cumprir um ritual de espera. Tem o aspecto bem melhor do que o daquele dia em que o desemparedaram,mas seu único olho cintila com brilho especial. Nenhum mistério, porém, envolve seu reaparecimento: ele foi " adotado" por um dos policiais que esteve, naquele dia fatídico, no porão de minha casa.
Considerando que são coincidências, mesmo levando-se em conta que tudo envolve um só personagem- um gato preto- por que, há três dias , não durmo? Por que este pavor, se tudo o que houve antes tem explicação racional? Por que acho que, se dormir, amanhecerei com os olhos vazados por garras felinas?
Neste fim de tarde, por exemplo, ele está ali, na janelinha, olhando-me fixamente . E eu preciso tanto dormir.
quinta-feira, 22 de janeiro de 2009
OS OLHOS DE BEATRIZ
Denise Ravizzoni
(Para Poe, com carinho)
Ela não se achava propriamente bonita. Talvez os outros a achassem. Tinha a beleza que era de se esperar das mulheres da sua idade. O rosto era mais jovem que o corpo. A alma era um muito mais velha. Mas seu maior encanto era um incrível par de olhos enigmáticos, de um verde meio castanho lembrando o musgo das pedras. Podiam ser profundos, calmos, melancólicos, aflitos, promissores, desesperados. Ou tudo ao mesmo tempo, se ela assim desejasse. Olhos de cobra ou de esfinge. Olhos de salvação ou olhos de abismo.
Era com tal olhar que cativava os ouvintes, que prendia a atenção, que acalmava as crianças, que enfeitiçava os amigos, que seduzia seus homens. Não havia quem não amasse tais olhos. Mesmo quem não tinha por ela nenhum apreço, quem a detestava mesmo, com força e com vontade, precisava reconhecer o prodígio de que aqueles olhos eram capazes.
E por essas esferas, de matéria para ela indefinida (de que são feitos os olhos, afinal?), é que seguia conhecendo a vida. Lia, estudava, via as cores, observava as pessoas, identificava padrões. Pelos olhos o mundo tinha passagem de entrada para o seu universo interior, para seus planetas particulares, suas órbitas privativas, seus outros tantos eus.
Tais olhos provocavam reações extremas. Havia quem mirasse o olhar de Beatriz e se sentisse imediatamente atingido por alguma coisa que não conseguia definir. E a procura de uma explicação para o mistério que tornasse tal olhar plausível, inteligível, humano, que desmontasse o mito dos olhos da mulher, às vezes se transformava em obsessão. Foi assim que aqueles olhos começaram a perder a luz e ganharam uma expressão sombria, que se tornava um pouco mais intensa a cada dia. Sombra do medo.
Beatriz se sentia observada por outros olhos, sempre os mesmos, sempre sedentos, sempre esquivos. Queria saber quem a espionava assim, quem a perseguia em todos os lugares, quem assistia aos seus menores movimentos. Não conseguia ver nada além do que todos viam.
Por outro lado, seu algoz queria enxergar através dos olhos de Beatriz. Queria ver o que ela via, queria a luz que ela absorvia. E assim se passavam os dias. Ele espreitava, ela fugia, e sabia que o encontro, mais cedo ou mais tarde, seria inevitável. Ela conseguia sentir o momento se aproximando, o dia em que ficaria frente a frente com quem, há tanto tempo, a observava. Sabia que, quando a hora chegasse, não perguntaria nada, e também nada ouviria. Sabia perfeitamente o que desejava o seu caçador e o que iria ceder para reconquistar a paz de viver em paz.
Então, no final de uma tarde fria - o sol poente manchava de sangue o azul limpo do céu, Beatriz pousou seu olhar no do homem que a perseguia com tamanha devoção que já o entendia como parte dela mesma, como conseqüência inevitável de existir. Olhando nos olhos do homem, sabia o que ele sentia, conseguia ler a angústia, a necessidade e a urgência que o moviam e faziam com que ele a seguisse, e também conseguia prever o que ia perder. Por isso não emitiu nenhum som quando ele se aproximou e o mundo escureceu. Por isso continuou calada quando ouviu os passos do homem se afastando, rápido e ofegante, carregando nas mãos manchadas de sangue os olhos verdes opacos, agora sem brilho e sem luz. Caiu de joelhos em seu novo mundo de trevas e, pela primeira vez em muito tempo, não sentiu sobre ela a lâmina fria e afiada da obsessão. O escuro, enfim, era seu descanso, sua trégua e seu conforto.
Era com tal olhar que cativava os ouvintes, que prendia a atenção, que acalmava as crianças, que enfeitiçava os amigos, que seduzia seus homens. Não havia quem não amasse tais olhos. Mesmo quem não tinha por ela nenhum apreço, quem a detestava mesmo, com força e com vontade, precisava reconhecer o prodígio de que aqueles olhos eram capazes.
E por essas esferas, de matéria para ela indefinida (de que são feitos os olhos, afinal?), é que seguia conhecendo a vida. Lia, estudava, via as cores, observava as pessoas, identificava padrões. Pelos olhos o mundo tinha passagem de entrada para o seu universo interior, para seus planetas particulares, suas órbitas privativas, seus outros tantos eus.
Tais olhos provocavam reações extremas. Havia quem mirasse o olhar de Beatriz e se sentisse imediatamente atingido por alguma coisa que não conseguia definir. E a procura de uma explicação para o mistério que tornasse tal olhar plausível, inteligível, humano, que desmontasse o mito dos olhos da mulher, às vezes se transformava em obsessão. Foi assim que aqueles olhos começaram a perder a luz e ganharam uma expressão sombria, que se tornava um pouco mais intensa a cada dia. Sombra do medo.
Beatriz se sentia observada por outros olhos, sempre os mesmos, sempre sedentos, sempre esquivos. Queria saber quem a espionava assim, quem a perseguia em todos os lugares, quem assistia aos seus menores movimentos. Não conseguia ver nada além do que todos viam.
Por outro lado, seu algoz queria enxergar através dos olhos de Beatriz. Queria ver o que ela via, queria a luz que ela absorvia. E assim se passavam os dias. Ele espreitava, ela fugia, e sabia que o encontro, mais cedo ou mais tarde, seria inevitável. Ela conseguia sentir o momento se aproximando, o dia em que ficaria frente a frente com quem, há tanto tempo, a observava. Sabia que, quando a hora chegasse, não perguntaria nada, e também nada ouviria. Sabia perfeitamente o que desejava o seu caçador e o que iria ceder para reconquistar a paz de viver em paz.
Então, no final de uma tarde fria - o sol poente manchava de sangue o azul limpo do céu, Beatriz pousou seu olhar no do homem que a perseguia com tamanha devoção que já o entendia como parte dela mesma, como conseqüência inevitável de existir. Olhando nos olhos do homem, sabia o que ele sentia, conseguia ler a angústia, a necessidade e a urgência que o moviam e faziam com que ele a seguisse, e também conseguia prever o que ia perder. Por isso não emitiu nenhum som quando ele se aproximou e o mundo escureceu. Por isso continuou calada quando ouviu os passos do homem se afastando, rápido e ofegante, carregando nas mãos manchadas de sangue os olhos verdes opacos, agora sem brilho e sem luz. Caiu de joelhos em seu novo mundo de trevas e, pela primeira vez em muito tempo, não sentiu sobre ela a lâmina fria e afiada da obsessão. O escuro, enfim, era seu descanso, sua trégua e seu conforto.
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